terça-feira, 14 de setembro de 2010

A Segunda Infância - Pintura

Sempre compreendo o que faço depois que já fiz.
O que sempre faço nem seja uma aplicação de
estudos. É sempre uma descoberta. Não é nada
procurado. É achado mesmo. Como se andasse num
brejo e desse no sapo. Acho que é defeito de
nascença isso. Igual como a gente nascesse de
quatro olhares ou de quatro orelhas. Um dia tentei
desenhar as formas da Manhã sem lápis. Já pensou?
Por primeiro havia que humanizar a Manhã.
Torná-la biológica. Fazê-la mulher. Antesmente
eu tentara coisificar as pessoas e humanizar as
coisas. Porém humanizar o tempo! Uma parte do
tempo? Era dose. Entretanto eu tentei. Pintei sem
lápis a Manhã de pernas abertas para o Sol. A
manhã era mulher e estava de pernas abertas para
o sol. Na ocasião eu aprendera em Vieira (Padre
Antônio, 1604, Lisboa) eu aprendera que as
imagens pintadas com palavras eram para se ver de
ouvir. Então seria o caso de se ouvir a frase pra
se enxergar a Manhã de pernas abertas? Estava
humanizada essa beleza de tempo. E com seus
passarinhos, e as águas e o Sol a fecundar o
trecho. Arrisquei fazer isso com a Manhã, na cega.
Depois que meu avô me ensinou que eu pintara a
imagem erótica da Manhã. Isso fora.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A Segunda Infância - Lacraia

Um trem de ferro com vinte vagões quando descarrila,
ele sozinho não se recompõe. A cabeça do trem ou seja
a máquina, sendo de ferro não age. Ela fica no lugar.
Porque a máquina é uma geringonça fabricada pelo
homem. E não tem ser. Não tem destinação de Deus. Ela
não tem alma. É máquina. Mas isso não acontece com a
lacraia. Eu tive na infância uma experiência que
comprova o que falo. Em criança a lacraia sempre me
pareceu um trem. A lacraia parece que puxava vagões.
E todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões
de trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões
de trem. Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar
a lacraia. E fizemos essa malvadeza. Essa peraltagem.
Cortamos todos os gomos da lacraia e os deixamos no
terreiro. Os gomos separados como os vagões da máquina.
E os gomos da lacraia começaram a se mexer. O que é
a natureza! Eu não estava preparado para assistir
aquela  coisa estranha. Os gomos da lacraia começaram
a se mexer e se encostarem um no outro para se emendarem.
A gente, nós, os meninos, não estávamos preparados
para assistir àquela coisa estranha. Pois a lacraia
estava se recompondo. Um gomo da lacraia procurava
o seu parceiro parece que pelo cheiro. A gente como que
reconhecia a força de Deus. A cabeça da lacraia estava
na frente e esperava os outros vagões se emendarem.
Depois, bem mais tarde eu escrevi este verso: com
pedaços de mim eu monto um ser atônito. Agora me indago
se esse verso não veio da peraltagem do menino. Agora
quem está atônito sou eu.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A Segunda Infância - Estreante

Fui morar numa pensão na rua do Catete.
A dona era viúva e buliçosa
e tinha uma filha Indiana que dava pancas.
Me abatia.
Ela deixava a porta do banheiro meio aberta
e isso me abatia.
Eu teria 15 anos e ela 25.
Ela me ensinava:
Precisa não afobar.
Precisa ser bem animal.
Como um cavalo. Nobremente.
Usar o desorgulho dos animais.
Morder lamber cheirar fugir voltar arrodear
lamber beijar cheirar fugir voltar
até.
Nobremente. Como os animais.
Isso eu aprendi com minha namorada Indiana.
Ela me ensinava com ungüentos.
Passava ungüento passava ungüento passava ungüento.
Dizia que era um ato religioso foder.
E que era preciso adornar os desejos com ungüento.
E passava ungüento e passava ungüento.
Só depois que adornava bem ela queria.
Pregava que fazer amor é uma eucaristia.
Que era uma comunhão.
E a gente comungava o Pão dos Anjos.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A Infância - Sobre sucatas

Isto porque a gente foi criada em lugar onde não tinha brinquedo
fabricado. Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos:
eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a
gente fazia de conta que sapo é boi de cela e viajava de sapo. Outra era
ouvir nas conchas as origens do mundo. Estranhei muito quando, mais
tarde, precisei de morar na cidade. Na cidade, um dia, contei para
minha mãe que vira na Praça um homem montado no cavalo de pedra a
mostrar uma faca comprida para o alto. Minha mãe corrigiu que não era
uma faca, era uma espada. E que o homem era um herói da nossa
história. Claro que eu não tinha educação de cidade para saber que
herói era um homem sentado num cavalo de pedra. Eles eram pessoas
antigas da história que algum dia defenderam a nossa Pátria. Para mim
aqueles homens em cima da pedra eram sucata. Seriam sucata da
história. Porque eu achava que uma vez no vento esses homens seriam
como trastes, como qualquer pedaço de camisa nos ventos. Eu me
lembrava dos espantalhos vestidos com as minhas camisas. O mundo era
um pedaço complicado para o menino que viera da roça. Não vi
nenhuma coisa mais bonita na cidade do que um passarinho. Vi que
tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta, avião, automóvel. Só o
que não vira sucata é ave, árvore, rã, pedra. Até nave espacial vira sucata.
Agora eu penso uma garça branca de brejo ser mais linda que uma nave
espacial. Peço desculpas por cometer essa verdade.

A Infância - Achadouros

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade.
A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o
tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com
as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do
nosso quintal são sempre maiores que as outras pedras do mundo.
Justo pelo motivo da intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o
nosso quintal é outra coisa. Aquilo que a negra Pombada, remanescente
de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos meninos de
Corumbá sobre achadouros. Que eram buracos que os holandeses, na
fuga apressada do Brasil, faziam nos seus quintais para esconder suas
moedas de ouro, dentro de grandes baús de couro. Os baús ficavam
cheios de moedas dentro daqueles buracos. Mas eu estava a pensar em
achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira
do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente
cavar um buraco a pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar
no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de
infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu
quintal vestígios dos meninos que fomos. Hoje encontrei um baú cheio
de punhetas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A Infância - Latas

Estas latas têm que perder, por primeiro, todos os ranços (e artifícios)
da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na
terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e
quatro anos elas merecerão de ser chão. Esse desmanche em natureza é
doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos
vermes. Depois desse desmanche em natureza, as latas podem até
namorar com as borboletas. Isso é muito comum. Diferentes de nós as
com o tempo rejuvenescem, se jogadas na terra. Chegam quase até
de serem pousadas de caracóis. Elas sabem, as latas, que precisam
chegar ao estágio de uma parede suja. Só assim serão procuradas pelos
caracóis. Sabem muito bem, estas latas, que precisam da intimidade com
o lodo obsceno das moscas. Ainda elas precisam de pensar em ter raízes.
Para que possam obter estames e pistilos. A fim de que um dia elas
possam se oferecer às abelhas. Elas precisam de ser um ensaio de árvore
a fim de comungar a natureza. O destino das latas pode também ser
pedra. Elas hão de ser cobertas de limo e musgo. As latas precisam
ganhar o prêmio de dar flores. Elas têm de participar dos passarinhos.
Eu sempre desejei que as minhas latas tivessem aptidão para
passarinhos. Como os rios têm, como as árvores têm. Elas ficam muito
orgulhosas quando passam do estágio de chutadas nas ruas para o
estágio de poesia. Acho esse orgulho das latas muito justificável e até
louvável.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A Infância - Caso de amor

Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por
desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os
espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito
de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela
bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e
estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu
passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos
depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo.
De minha parte eu achei ela bem acabadinha. Sobre suas pedras agora
raramente um cavalo passeia. E quando vem um, ela o segura com
carinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e de
bichos. Emas passavam sempre por ela esvoaçantes. Bando de caititus a
atravessavem para ver o rio do outro lado. Eu estou imaginando que a
estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida.
Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela
como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe deixe meu amor, tudo
vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos
vai desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe, meu amor.

A Infância - A rã

O homem estava sentado sobre uma lata na beira de uma garça.
O rio Amazonas passava ao lado. Mas eu queria insistir no caso da rã.
Não seja este um ensaio sobre orgulho de rã. Porque me contou aquela
uma vez que ela comandava o rio Amazonas. Falava, em tom sério, que o
rio passava nas margens dela. Ora, o que se sabe, pelo bom senso, é que
são as rãs que vivem nas margens dos rios. Mas aquela rã contou que
estava estabelecida ali desde o começo do mundo. Bem antes do rio
fazer leito para passar. E que, portanto, ela tinha a importância de
chegar primeiro. Que ela era por todos os motivos primordial. E quem
se fez primordial tem o condão das primazias. Portanto era o rio
Amazonas que passava por ela. Então, a partir desse raciocínio, ela, a rã,
tinha mais importância. Sendo que a importância de uma coisa ou de
um ser não é tirada pelo tamanho ou volume do ser, mas pela
permanência do ser no lugar. Pela primazia. Por esse viés do primordial
é possível dizer que a pedra é mais importante que o homem.
Por esse viés, com certeza, a rã não é uma creatura orgulhosa. Dou
federação a ela. Assim como dou federação à garça quem teve um
homem sentado na beira dela. As garças têm primazia.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

A Infância - Brincadeiras

No quintal a gente gostava de brincar com as palavras
mais do que de bicicleta.
Principalmente porque ninguém possuía bicicleta.
A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim:
A céu tem três letras
O sol tem três letras
O inseto é maior.
O que parecia um despropósito
para nós não era despropósito.
Porque o inseto tem seis letras e o sol só tem três
logo o inseto é maior. (Aqui entrava a lógica?)
Meu irmão que era estudado falou quê lógica quê nada
Isso é um sofisma. A gente boiou no sofisma.
Ele disse que sofisma é risco n'água. Entendemos tudo.
Depois Cipriano falou:
Mais alto do que eu só Deus e os passarinhos.
A dúvida era saber se Deus também avoava
Ou se Ele está em toda parte como a mãe ensinava.
Cipriano era um indiozinho guató que aparecia no
quintal, nosso amigo. Ele obedecia a desordem.
Nisso apareceu meu avô.
Ele estava diferente e até jovial.
Contou-nos que tinha trocado o Ocaso dele por duas andorinhas.
A gente ficou admirado daquela troca.
Mas não chegamos a ver as andorinhas.
Outro dia a gente destampamos a cabeça do Cipriano.
Lá dentro só tinha árvore árvore árvore
Nenhuma idéia sequer.
Falaram que ele tinha predominâncias vegetais do que platônicas.
Isso era.

A Infância - O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Infância - Cabeludinho

Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos:
Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que
eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu.
Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de
palhaço. Minha avó entendia  de regências verbais. Ela falava sério.
Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer
de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a
beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento
de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina
esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo
trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a
brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a  não
gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar.
Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo
que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade:
Ai morena, não me escreve / que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao
verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro.

A Infância - Fraseador

Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze.
Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na
fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro.
Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de
fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador.
Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a
cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais
velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa?
Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu:
Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar
uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe
baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não
botou enxada.

domingo, 29 de agosto de 2010

A Infância - O lavador de pedra

A gente morava no patrimônio de Pedra Lisa. Pedra Lisa era um
arruado de 13 casas e o rio por detrás. Pelo arruado passavam comitivas
de boiadeiros e muitos andarilhos. Meu avô botou uma Venda no
arruado. Vendia toucinho, freios, arroz, rapadura e tais. Os mantimentos
que os boiadeiros compravam de passagem. Atrás da Venda estava o rio.
E uma pedra que aflorava no meio do rio. Meu avô, de tardezinha, ia
lavar a pedra onde as garças pousavam e cacaravam. Na pedra não
crescia nem musgo. Porque o cuspe das garças tem um ácido que mata
no nascedouro qualquer espécie de planta. Meu avô ganhou o desnome
de Lavador de Pedra. Porque toda tarde ele ia lavar aquela pedra.
A Venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama ficasse
abandonada. É que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras
estradas. A Venda ficou por isso no abandono de morrer. Pelo arruado
só passavam agora os andarilhos. E os andarilhos paravam sempre para
uma prosa com o meu avô. E para dividir a vianda que a mãe mandava
para ele. Agora o avô morava na porta da Venda, debaixo de um pé de
jatobá. Dali ele via os meninos rodando arcos de barril ao modo que
bicicleta. Via os meninos em cavalo-de-pau correndo ao modo que
montados em ema. Via os meninos que jogavam bola de meia ao modo
que de couro. E corriam velozes pelo arruado ao modo que tivessem
comido canela de cachorro. Tudo isso mais os passarinhos e os
andarilhos era a paisagem do meu avô. Chegou que ele disse uma vez:
Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm dom de ser poesia.
Dom de ser poesia é muito bom!

sábado, 28 de agosto de 2010

A Infância - Ver

Nas férias toda tarde eu via a lesma no quintal. Era a mesma lesma.
Eu via toda tarde a mesma lesma se despregar de sua concha, no
quintal, e subir na pedra. E ela me parecia viciada. A lesma ficava
pregada na pedra, nua de gosto. Ela possuíra a pedra? Ou seria
possuída? Era era pervertido naquele espetáculo. E se eu fosse um
voyeur no quintal, sem binóculos? Podia ser. Mas eu nunca neguei para
os meus pais que eu gostava de ver a lesma se entregar à pedra. (pode
ser que eu esteja empregando erradamente o verbo entregar, em vez
de subir. Pode ser. Mas ao fim não dará na mesma?) Nunca escondi
aquele meu delírio erótico. Nunca escondi de meus pais aquele gosto
supremo de ver. Dava a impressão que havia uma troca voraz entre a
lesma e a pedra. Confesso, aliás, que eu gostava muito, a esse tempo,
de todos os seres que andavam a esfregar as barrigas no chão. Lagartixas
fossem muito principais do que as lesmas nesse ponto. Eram esses
pequenos seres que viviam as gosto do chão que me davam fascínio.
Eu não via nenhum espetáculo mais edificante do que pertencer do
chão. Para mim esses pequenos seres tinham o privilégio de ouvir as
fontes da terra.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A Infância - Parrrede!

Quando eu estudava no colégio, interno,
Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
- Corrumbá, no parrrede!
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu pra decorar o Sermão da Sexagésima
de Vieira.
- Decorar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais pecado solitário!
E fiz de montão.
- Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o silêncio
das paredes.

A Infância - Desobjeto

O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente.
O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto
de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se havia incluído
no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era alguma coisa
nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes.
Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente
tem organismo.
O fato é que  o pente estava sem costela. Não se poderia mais dizer se
aquela coisa fora um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora
feito o pente deram lugar a um esverdeado a musgo. Acho que os bichos
do lugar mijavam muito naquele desobjeto. O fato é que o pente
perdera a sua personalidade. Estava encostada às raízes de uma árvore e
não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era esquerdo
e tinha cacoete pra poeta, justamente ele enxergava o pente naquele
estado terminal. E o menino deu para imaginar que o pente, naquele
estado, já estaria incorporado à natureza como um rio, um osso, um
lagarto. Eu acho que as árvores colaboravam na solidão daquele pente.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A Infância - Obrar

Naquele outono, de tarde, ao pé da roseira de minha
avó, eu obrei.
Minha avó não ralhou nem.
Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte.
Esse verbo tinha um dom diferente.
Obrar seria o mesmo que cacarar.
Sei que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos
Os passarinhos cacaram nas folhas nos postes nas pedras do rio
nas casas.
Eu só obrei no pé da roseira da minha avó.
Mas ela não ralhou nem.
Ela disse que as roseiras estavam carecendo de esterco orgânico.
E que as obras trazem força e beleza às flores.
Por isso, para ajudar, andei a fazer obra nos canteiros da horta.
Eu só queria dar força às beterrabas e aos tomates.
A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é uma
coisa desprezível.
Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os
ensinos do pai
Minha avó, ela era transgressora.
No propósito ela me disse que até as mariposas gostavam
de roçar nas obras verdes.
Entendi que obras verdes seriam aquelas feitas no dia.
Daí que também a vó me ensinou a não desprezar as coisas
desprezíveis
E nem os seres desprezados.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A infância - Escova

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Prefácio das Infâncias

Descobri Manuel de Barros faz poucos meses. Mas em alguns minutos percebi que aquele seria um dos meus autores preferidos. Ele tem a genialidade na simplicidade. Mas é assustador o quão pouco existe do poeta na internet e nas livrarias. Consegui a obra completa através de uma editora portuguesa, então dá pra imaginar o descaso. Isso muito se deve ao próprio autor que foge da mídia como bicho arisco. 
Penso que os autores não devem ser lidos e admirados apenas depois de morrer. Acontece muito isso no Brasil e para, ao menos, dar uma idéia da genialidade do autor, resolvi publicar pausadamente suas "autobiografias poéticas" chamadas de A Infância, Segunda e Terceira infância. São livros de maturidade, onde Manuel consegue uma síntese expressiva "doloridamente" bela, como ele poderia dizer. Segue o prefácio das três infâncias:




MANUEL DE BARROS


Memórias Inventadas
A Infância


Tudo que não invento é falso.


Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comuhão com as coisas que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a vizão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem puder que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua das coisas vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia tranfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.