terça-feira, 14 de setembro de 2010

A Segunda Infância - Pintura

Sempre compreendo o que faço depois que já fiz.
O que sempre faço nem seja uma aplicação de
estudos. É sempre uma descoberta. Não é nada
procurado. É achado mesmo. Como se andasse num
brejo e desse no sapo. Acho que é defeito de
nascença isso. Igual como a gente nascesse de
quatro olhares ou de quatro orelhas. Um dia tentei
desenhar as formas da Manhã sem lápis. Já pensou?
Por primeiro havia que humanizar a Manhã.
Torná-la biológica. Fazê-la mulher. Antesmente
eu tentara coisificar as pessoas e humanizar as
coisas. Porém humanizar o tempo! Uma parte do
tempo? Era dose. Entretanto eu tentei. Pintei sem
lápis a Manhã de pernas abertas para o Sol. A
manhã era mulher e estava de pernas abertas para
o sol. Na ocasião eu aprendera em Vieira (Padre
Antônio, 1604, Lisboa) eu aprendera que as
imagens pintadas com palavras eram para se ver de
ouvir. Então seria o caso de se ouvir a frase pra
se enxergar a Manhã de pernas abertas? Estava
humanizada essa beleza de tempo. E com seus
passarinhos, e as águas e o Sol a fecundar o
trecho. Arrisquei fazer isso com a Manhã, na cega.
Depois que meu avô me ensinou que eu pintara a
imagem erótica da Manhã. Isso fora.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A Segunda Infância - Lacraia

Um trem de ferro com vinte vagões quando descarrila,
ele sozinho não se recompõe. A cabeça do trem ou seja
a máquina, sendo de ferro não age. Ela fica no lugar.
Porque a máquina é uma geringonça fabricada pelo
homem. E não tem ser. Não tem destinação de Deus. Ela
não tem alma. É máquina. Mas isso não acontece com a
lacraia. Eu tive na infância uma experiência que
comprova o que falo. Em criança a lacraia sempre me
pareceu um trem. A lacraia parece que puxava vagões.
E todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões
de trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões
de trem. Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar
a lacraia. E fizemos essa malvadeza. Essa peraltagem.
Cortamos todos os gomos da lacraia e os deixamos no
terreiro. Os gomos separados como os vagões da máquina.
E os gomos da lacraia começaram a se mexer. O que é
a natureza! Eu não estava preparado para assistir
aquela  coisa estranha. Os gomos da lacraia começaram
a se mexer e se encostarem um no outro para se emendarem.
A gente, nós, os meninos, não estávamos preparados
para assistir àquela coisa estranha. Pois a lacraia
estava se recompondo. Um gomo da lacraia procurava
o seu parceiro parece que pelo cheiro. A gente como que
reconhecia a força de Deus. A cabeça da lacraia estava
na frente e esperava os outros vagões se emendarem.
Depois, bem mais tarde eu escrevi este verso: com
pedaços de mim eu monto um ser atônito. Agora me indago
se esse verso não veio da peraltagem do menino. Agora
quem está atônito sou eu.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A Segunda Infância - Estreante

Fui morar numa pensão na rua do Catete.
A dona era viúva e buliçosa
e tinha uma filha Indiana que dava pancas.
Me abatia.
Ela deixava a porta do banheiro meio aberta
e isso me abatia.
Eu teria 15 anos e ela 25.
Ela me ensinava:
Precisa não afobar.
Precisa ser bem animal.
Como um cavalo. Nobremente.
Usar o desorgulho dos animais.
Morder lamber cheirar fugir voltar arrodear
lamber beijar cheirar fugir voltar
até.
Nobremente. Como os animais.
Isso eu aprendi com minha namorada Indiana.
Ela me ensinava com ungüentos.
Passava ungüento passava ungüento passava ungüento.
Dizia que era um ato religioso foder.
E que era preciso adornar os desejos com ungüento.
E passava ungüento e passava ungüento.
Só depois que adornava bem ela queria.
Pregava que fazer amor é uma eucaristia.
Que era uma comunhão.
E a gente comungava o Pão dos Anjos.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A Infância - Sobre sucatas

Isto porque a gente foi criada em lugar onde não tinha brinquedo
fabricado. Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos:
eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a
gente fazia de conta que sapo é boi de cela e viajava de sapo. Outra era
ouvir nas conchas as origens do mundo. Estranhei muito quando, mais
tarde, precisei de morar na cidade. Na cidade, um dia, contei para
minha mãe que vira na Praça um homem montado no cavalo de pedra a
mostrar uma faca comprida para o alto. Minha mãe corrigiu que não era
uma faca, era uma espada. E que o homem era um herói da nossa
história. Claro que eu não tinha educação de cidade para saber que
herói era um homem sentado num cavalo de pedra. Eles eram pessoas
antigas da história que algum dia defenderam a nossa Pátria. Para mim
aqueles homens em cima da pedra eram sucata. Seriam sucata da
história. Porque eu achava que uma vez no vento esses homens seriam
como trastes, como qualquer pedaço de camisa nos ventos. Eu me
lembrava dos espantalhos vestidos com as minhas camisas. O mundo era
um pedaço complicado para o menino que viera da roça. Não vi
nenhuma coisa mais bonita na cidade do que um passarinho. Vi que
tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta, avião, automóvel. Só o
que não vira sucata é ave, árvore, rã, pedra. Até nave espacial vira sucata.
Agora eu penso uma garça branca de brejo ser mais linda que uma nave
espacial. Peço desculpas por cometer essa verdade.

A Infância - Achadouros

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade.
A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o
tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com
as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do
nosso quintal são sempre maiores que as outras pedras do mundo.
Justo pelo motivo da intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o
nosso quintal é outra coisa. Aquilo que a negra Pombada, remanescente
de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos meninos de
Corumbá sobre achadouros. Que eram buracos que os holandeses, na
fuga apressada do Brasil, faziam nos seus quintais para esconder suas
moedas de ouro, dentro de grandes baús de couro. Os baús ficavam
cheios de moedas dentro daqueles buracos. Mas eu estava a pensar em
achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira
do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente
cavar um buraco a pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar
no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de
infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu
quintal vestígios dos meninos que fomos. Hoje encontrei um baú cheio
de punhetas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A Infância - Latas

Estas latas têm que perder, por primeiro, todos os ranços (e artifícios)
da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na
terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e
quatro anos elas merecerão de ser chão. Esse desmanche em natureza é
doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos
vermes. Depois desse desmanche em natureza, as latas podem até
namorar com as borboletas. Isso é muito comum. Diferentes de nós as
com o tempo rejuvenescem, se jogadas na terra. Chegam quase até
de serem pousadas de caracóis. Elas sabem, as latas, que precisam
chegar ao estágio de uma parede suja. Só assim serão procuradas pelos
caracóis. Sabem muito bem, estas latas, que precisam da intimidade com
o lodo obsceno das moscas. Ainda elas precisam de pensar em ter raízes.
Para que possam obter estames e pistilos. A fim de que um dia elas
possam se oferecer às abelhas. Elas precisam de ser um ensaio de árvore
a fim de comungar a natureza. O destino das latas pode também ser
pedra. Elas hão de ser cobertas de limo e musgo. As latas precisam
ganhar o prêmio de dar flores. Elas têm de participar dos passarinhos.
Eu sempre desejei que as minhas latas tivessem aptidão para
passarinhos. Como os rios têm, como as árvores têm. Elas ficam muito
orgulhosas quando passam do estágio de chutadas nas ruas para o
estágio de poesia. Acho esse orgulho das latas muito justificável e até
louvável.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A Infância - Caso de amor

Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por
desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os
espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito
de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela
bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e
estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu
passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos
depois. Eu sinto que ela melhora de eu ir sozinho sobre seu corpo.
De minha parte eu achei ela bem acabadinha. Sobre suas pedras agora
raramente um cavalo passeia. E quando vem um, ela o segura com
carinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e de
bichos. Emas passavam sempre por ela esvoaçantes. Bando de caititus a
atravessavem para ver o rio do outro lado. Eu estou imaginando que a
estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida.
Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela
como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe deixe meu amor, tudo
vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos
vai desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe, meu amor.

A Infância - A rã

O homem estava sentado sobre uma lata na beira de uma garça.
O rio Amazonas passava ao lado. Mas eu queria insistir no caso da rã.
Não seja este um ensaio sobre orgulho de rã. Porque me contou aquela
uma vez que ela comandava o rio Amazonas. Falava, em tom sério, que o
rio passava nas margens dela. Ora, o que se sabe, pelo bom senso, é que
são as rãs que vivem nas margens dos rios. Mas aquela rã contou que
estava estabelecida ali desde o começo do mundo. Bem antes do rio
fazer leito para passar. E que, portanto, ela tinha a importância de
chegar primeiro. Que ela era por todos os motivos primordial. E quem
se fez primordial tem o condão das primazias. Portanto era o rio
Amazonas que passava por ela. Então, a partir desse raciocínio, ela, a rã,
tinha mais importância. Sendo que a importância de uma coisa ou de
um ser não é tirada pelo tamanho ou volume do ser, mas pela
permanência do ser no lugar. Pela primazia. Por esse viés do primordial
é possível dizer que a pedra é mais importante que o homem.
Por esse viés, com certeza, a rã não é uma creatura orgulhosa. Dou
federação a ela. Assim como dou federação à garça quem teve um
homem sentado na beira dela. As garças têm primazia.